António Botto foi poeta, contista e dramaturgo, conhecido pela sua poesia homoerótica. No livro Ódio e amor, de 1947, o poeta deambulou por Lisboa à noite e escreveu sobre o que viu e o que ouviu, num percurso de três poemas entre o Rossio, Alfama, Mouraria e Baixa pombalina.
Ódio e amor, de 1947, é a obra poética onde António Botto pouco dá a conhecer o seu lado homossexual. Ao invés, escreve sobre o que vê e o que ouve quando deambula por cidades europeias, entre elas Lisboa, que é “um dos aspetos que nesta obra parecem mais interessantes: a imagem da cidade noturna, geralmente identificada de modo explícito com Lisboa”, escrevem Alexandra de Brito Mariano, do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos (CECH) da Universidade de Coimbra, e José Joaquim Dias Marques, investigador do Instituto de Estudos de Literatura e Tradição (IELT) da NOVA FCSH, nesta comunicação (2020) sobre os 60 anos da morte do poeta. Através de três poemas, no conjunto de 12 sobre Lisboa, os investigadores traçam um percurso e demonstram como era a cidade aos olhos de António Botto: triste e pobre.
Reportagem é um dos poemas analisados pelos investigadores; através dele, é possível traçar o percurso do poeta através de referências espaciais. O poema começa quando o eu poético abandona o Rossio e atravessa o Borratém (começo da baixa lisboeta) e “ruma depois em direção à Rua do Amparo e, em seguida, prossegue para norte até à hoje desaparecida Rua das Atafonas. Aí há referências também a espaços que a visão do sujeito poético abarca: «uma Igreja», talvez a do Socorro, e «Mais acima o Hospital» (p. 470), muito provavelmente o de S. José. Em seguida, o périplo estende‐se ainda mais para norte até à Rua do Benformoso”.
Quando o eu poético chega à Rua do Benformoso, decide caminhar para sul e desce ao Marquês do Alegre e vira para a Rua dos Fanqueiros. “Por fim «Cheg[a] ao Terreiro do Paço» e pára junto às «águas do rio», sentando‐se «num banco de pedra», onde «fic[a] a cismar» até nascer o dia”. Durante todo o percurso, o eu poético cruza-se com várias personagens de classes pobres ou desfavorecidas como, entre outras, prostitutas, um marinheiro, um polícia ou homens que “varrem as ruas”, em que ouve, observa e com algumas interage durante o seu passeio.
Desta Reportagem, o homoerotismo está disfarçado com a localização, acontecimento raro nesta obra de António Botto. Desde os finais do século XIX que algumas das zonas mais conhecidas para o engate homossexual e para a prostituição masculina eram o Rossio, a Rua da Palma, a Rua do Marquês do Alegrete, a Rua do Ouro, a Rua Augusta ou o Terreiro do Paço, locais por onde o poeta caminha ou passa nas imediações.
Já no poema Mouraria, o eu poético não apresenta um percurso, mas sim o bairro através de um episódio. É atraído pela luz do interior de uma casa e observa uma prostituta, descrevendo-a como um “«corpo murcho, enrugado» à porta de quem «já ninguém pára, ninguém!»”. António Botto faz uma comparação com o que outrora foi esta mulher, “A flor da Mouraria!” e percebe-se, como os investigadores afirmam, que “noite, fado, prostituição, decadência física e morte aparecem unidos na representação do bairro lisboeta que, ainda hoje, é visto como o lugar do nascimento do fado e, na época, era também a zona por excelência da prostituição na capital”.
O terceiro poema analisado, Alfama, apresenta quatro cenas e três personagens daquele bairro, caraterizando-o. O primeiro momento apresenta-se em forma de analepse, com meninos a cantar o “giro-flé-giro-flá”, brincadeira interrompida pelo chamamento das mães. De seguida, o poeta apresenta, em cada momento, as três personagens de Alfama: o Chico, operário de uma oficina e mal correspondido no amor, que vive com a mãe na casa número 27; Celeste, que vive com o marido paralisado e com os dois filhos; e Rosário, que nos braços tem um menino de 15 meses e sofre com a ausência de Guilherme, o marido que trabalha como fogueiro no navio de pesca do bacalhau Gil Eanes.
O eu poético, à semelhança do poema Mouraria, é atraído pela luz do interior das residências e “dão a ver uma Alfama triste, raiando a miséria, longe da imagem de pitoresco e alegria habitualmente associada a este bairro”. Nos versos de Botto, há referência à música na utilização de canções nas personagens de Chico, de Celeste e das crianças do início do poema.
São estes aspetos, mais mundanos e humildes, que constroem a cidade à noite na visão do poeta. Não escreve sobre a elite lisboeta, mas sobre aqueles que diariamente lutam pelo seu ganha-pão: “A Lisboa que Botto criou nestes textos é, portanto, uma Lisboa escura (já que os poemas se passam à noite), triste e pobre” concluem os investigadores.
Fotografia: Lisboa Noturna. Créditos: José Artur Leitão Bárcia (1915). Arquivo Municipal de Lisboa.
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