É do conhecimento geral que a industrialização em meados do século XIX trouxe a Lisboa mais pessoas e mais necessidades de tudo: habitação, condições sanitárias e ordenação do espaço urbano. Porém, ao contrário do que seria de esperar, a resposta a estes desafios não veio dos Governos. Foi neste cenário peculiar que nasceram os pátios e as vilas operárias.
Lisboa transformou-se com a industrialização e com a procura de habitação por parte da população que trocou o campo pela cidade. Lisboa passou a ser uma “cidade capitalista”, lugar onde as diferenças de ordenados e as hierarquias começaram a ser visíveis na estrutura urbana e social da cidade, o que levou à desorganização do espaço urbano. E a pobreza e falta de condições sanitárias tornaram-se ainda mais flagrantes.
Gonçalo Antunes, investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA) da NOVA FCSH, analisa no capítulo do livro “Espaço Urbano e Habitação Básica – Como Primeiro Direito” (Humus, 2021), entre outras questões, como é que os Governos lidaram com as questões habitacionais à época.
A resposta é simples: não lidaram. Foram os pequenos promotores e os donos das indústrias lisboetas, numa primeira fase, que mandaram construir vilas operárias para a população operária: “A primeira grande crise habitacional em Lisboa foi resolvida por promotores privados, designadamente por industriais e construtores civis, que implementavam soluções de colonização interna de quarteirões sem preocupações de índole social”, aponta.
Mas como é que esta (des)organização espacial começou? Primeiro, com a ampliação do edificado já existente. De forma rápida, a população rural começou a chegar a Lisboa e foi ocupando os edifícios já existentes, ao adicionar às estruturas novos andares, águas furtadas e mansardas, habitando, também, lojas e caves subterrâneas, assim como antigos conventos e palácios abandonados, que converteram em residência.
Todos os espaços, por mais degradantes que se apresentassem, serviam para viver: “Os recém-chegados instalavam-se em locais excessivamente densificados, apinhando-se em casas de pequenas dimensões e com condições extremamente precárias”, aponta o investigador, como eram os casos dos bairros de Alfama, Mouraria, Madragoa ou Castelo.
Foi desta maneira que “nasceram” os primeiros pátios em Lisboa. Estes espaços eram conjuntos habitacionais salubres e informais, com problemas de estrutura, construídos sem terem em conta as condições de higiene e de conforto dos habitantes, de nível térreo no logradouro de um edifício maior. Outros pátios floresceram nos claustros de conventos abandonados e outros eram meramente becos, travessas ou pequenos largos. Esta era a “habitação popular” da capital no final do século XIX que, devido à ausência de condições higiénico-sanitárias, contribuiu para a disseminação de variadas epidemias à época. Era urgente a mudança.
O “Inquérito Industrial” de 1881 trouxe uma nova ordem. Nele, foram identificados os sintomas do que estava a correr mal: “A partir desse momento existiu um maior cuidado e atenção para com os espaços habitacionais da população mais carenciada, o que, somado à contínua chegada da população, terá levado, na cidade de Lisboa, ao aparecimento de vilas operárias”, escreve o autor.
Contudo, estas melhorias na habitação não foram da responsabilidade do Estado, mas sim de pequenos construtores civis e donos de indústrias. Estes espaços foram construídos em terrenos desvalorizados e numa lógica funcional e de rápida expansão, com a inexistência de fiscalização: “Estes conjuntos habito-industriais estavam diretamente ligados à produção e, por vezes, incluíam edifícios de uso coletivo, como, por exemplo, lavadouros, balneários, cuidados de saúde, educação primárias, mercearias, entre outros”, indica o investigador.
As vilas operárias habito-industriais, diretamente relacionadas com a produção e promovidas por filantropos (industriais), desengane-se quem pense que as intenções eram puras: apesar de garantirem habitação mais acessível ao rendimento dos operários, os patrões conseguiam, deste modo, recuperar parte do salário com a renda. Além disso, ao estarem mais perto das fábricas, os industriais conseguiam ter os operários controlados, não só no trabalho que desenvolviam, mas também na contenção da vontade em reivindicar direitos laborais.
As vilas operárias, como um autor citado pelo investigador aponta, foram um modelo quase único e exclusivo da cidade de Lisboa. As mais conhecidas, entre outras, são as da Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense (Alcântara, 1873), a Vila Cabrinha (Alcântara, 1878), o Pátio Bagatella (hoje condomínio de luxo, perto do Parque Eduardo VII, 1879), a Vila Pereira ou prédio Santos Lima (Marvilla, 1887), a Vila Dias (Xabregas, 1888), o Bairro ou Vila Grandella (Alcântara, 1902), o Bairro Estrela d’Ouro (Graça, 1907) e a Vila Cândida (Penha de França, 1912).
Para além destas, existiam ainda vilas destinadas para a pequena burguesia: “Estas vilas operárias continham boas condições de habitabilidade e rendas mais elevadas, com concepções construtivas mais elaboradas, componentes de construção de melhor qualidade e elementos decorativos que lhes concediam singularidade”, aponta Gonçalo Antunes. Exemplos destes são a Vila Berta, na Graça, ou a Villa Luz Pereira, na Mouraria. No total, o autor identifica e espacializa no seu trabalho 416 vilas operárias e 739 pátios, que existiriam, em Lisboa, na transição entre os séculos XIX e XX.
Fotografia de destaque: Vila Pereira ou prédio Santos Lima, em Marvila, nos dias de hoje. Créditos: Ana Sofia Paiva
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