São 739 pátios e 416 vilas operárias que quantificam a pobreza dos habitantes da Lisboa Oitocentista. Estes aglomerados modificaram a paisagem urbana e espacial da cidade, mas nem todos os que residiam nestas paupérrimas habitações trabalhavam nas fábricas que floresciam na cidade e na periferia, explica Gonçalo Antunes, investigador da NOVA FCSH.
O grande êxodo rural a que se assistiu na segunda metade do século XIX devido à crescente industrialização veio desordenar o espaço urbano de Lisboa. A capital ficou lotada de habitações sem condições e assistiu ao crescimento de pátios e vilas operárias. Na transição entre os séculos XIX e XX, contabilizaram-se 739 pátios e 416 vilas operárias na cidade.
Os números são da recolha e catalogação de Gonçalo Antunes, investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA) da NOVA FCSH, que analisou no capítulo do livro “Espaço Urbano e Habitação Básica – Como Primeiro Direito” (Humus, 2021) o que estas estruturas habitacionais representavam na geografia da cidade: “Estes conjuntos habitacionais constituem-se como testemunho histórico e urbano do passado da cidade”, aponta.
Lisboa deixou de ser a mesma. E, apesar de existirem mais pátios do que vilas operárias, Gonçalo Antunes admite a possibilidade de atribuir um maior peso demográfico às vilas, dado que tinham maiores dimensões e albergavam mais alojamentos logo, mais pessoas.
Além disso, as vilas operárias estavam relacionadas com a expansão industrial na periferia da cidade, enquanto que os pátios, devido à sua posição geográfica, eram habitados por operários que tinham atividades no coração de Lisboa. Apesar da relação entre as fábricas e a população, o autor refere que nem todos os empreendimentos eram habitados pelo proletariado fabril. A maioria dos trabalhadores eram, entre outras profissões, artesãos, vendedores ambulantes, comerciantes e pequenos funcionários públicos, ou seja, a classe pobre de Lisboa.
A maioria dos trabalhadores não tinha dinheiro para pagar uma renda e recorria a estes espaços por serem mais acessíveis: “A população mais indigente não tinha capacidade financeira para alugar algo que se parecesse com uma habitação, acabando por morar em abrigos improvisados, como caves, águas furtadas, covis subterrâneos (lojas), barracas e furnas”, explica o investigador. Os locais onde esta população vivia eram, paralelamente, as áreas mais degradadas da Lisboa Oitocentista: entre outros, os bairros de Alfama, Mouraria, São João, Marvila, Xabregas, Monte Prado, Alto dos Sete Moinhos, Campolide, Amoreiras, Alcântara, Santo Amaro e Bom Sucesso.
Para sempre o lugar dos pátios e das vilas operárias em Lisboa
Gonçalo Antunes identificou 739 pátios concentrados sobretudo dentro da cerca fernandina, ou seja, no coração de Lisboa. Mas esta realidade existiu até ao limite da Estrada da Circunvalação de 1852 (marco que delimitava os limites da cidade), hoje Rua Maria Pia. Fora deste limite, constatou-se que os pátios se aglomeravam nas novas áreas industriais, como é o caso de Alcântara e Beato.
As quatro principais aglomerações de pátios em Lisboa encontravam-se, em primeiro, na cerca fernandina. A segunda, no Eixo Campolide, Amoreiras, Rato, São Bento e Príncipe Real, à época uma área periférica em crescimento urbano e maturação industrial. A terceira, na Lisboa Oriental, no eixo Marvila, Poço do Bispo e Braço de Prata, bem como no Beato, no caminho entre Xabregas e Marvila, ao longo da Estrada de Chelas. E por último, no núcleo Vale de Alcântara, onde se encontram vários pátios nas duas margens da ribeira de Alcântara e na freguesia de Prazeres, onde se deve “dar especial ênfase à Rua Possidónio da Silva, que inclui dezenas de pátios em cerca de uma centena de metros”, aponta o investigador.
Para além destes principais núcleos, existiam outros de menor relevância, como os aglomerados associados às atividades do Porto de Lisboa, no eixo Estrela, Madragoa e Santos-o-Velho, o núcleo Barão Sabrosa e ainda nos arredores da cidade, com pátios nos caminhos que ligavam o campo à cidade.
Na recolha, identificaram-se também 416 vilas operárias que, ao contrário dos pátios, encontravam-se mais concentrados nas zonas industriais periféricas. Existem, porém, algumas exceções, como é o caso do núcleo de vilas operárias da Graça e da Penha de França, áreas onde se supõe que os trabalhadores se ocupassem de profissões relacionadas, entre outras, com o comércio, o artesanato ou o funcionalismo público. Na Rua Barão Sabrosa, perto da Alameda Dom Afonso Henriques, existia uma “concentração elevada de vilas operárias, tal como mais a Sul, em Alfama, Mouraria e Socorro”.
Mas a principal aglomeração das vilas operárias encontrava-se no lado ocidental da Circunvalação e na parte oriental do vale de Alcântara, que se pode definir como o eixo Alcântara, Prazeres, Santo Condestável, Campo de Ourique e Campolide. Este eixo, apesar de ter menos importância em relação ao lado ocidental da Rua Maria Pia, encontrava-se próximo das vilas operárias do Rato e Santa Isabel, estendendo-se até às imediações da Rua de São Bento. Nesta zona ainda se viam os aglomerados na Rua Possidónio da Silva e na Rua Saraiva de Carvalho.
Para além destes principais núcleos, o investigador destaca ainda as vilas operárias do eixo Marvila e Beato. À semelhança dos pátios, também se encontram vilas operárias nos arredores da cidade, ao longo de caminhos velhos, como em Benfica, Rossio de Palma (Laranjeiras), Carnide, Lumiar e Braço de Prata.
Num outro trabalho de Gonçalo Antunes (“Políticas de habitação 200 anos”, Caleidoscópio, 2018), o autor salienta também como estes pequenos conjuntos habitacionais atualmente se encontram escondidos e nas sombras da cidade, mas que representam uma importante herança habito-industrial da Lisboa Oitocentista.
Fotografia de destaque: Vila Dias, em Xabregas, nos dias de hoje. Créditos: Ana Sofia Paiva
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