O bairro lisboeta outrora conhecido como o “hipermercado da droga” costumava ser um lugar onde os vizinhos se tratavam como família e se dormia com a porta aberta no verão. Dois investigadores da NOVA FCSH descrevem como era viver no Casal Ventoso antes do mercado de narcotráfico.
“Havia uma senhora que era muito amiga da gente, ajudava-nos quando a minha mãe chegava tarde do trabalho: dava-nos uma buchinha e uma caneca de café. Sempre fomos pobres e passámos bastantes dificuldades”. A memória é de uma senhora de 80 anos que viveu no Casal Ventoso, registada por Miguel Pereira e Patrícia Pereira, ambos investigadores do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA) da NOVA FCSH, no livro “Casal Vistoso revisitado: memórias para imaginar o futuro” (Húmus, 2019).
A miséria era avassaladora, conta a entrevistada: “A gente saía daí para a Pimenteira, lavávamos a roupa, andávamos descalças, era uma miséria extrema”, mas a mais pequena ajuda fazia a diferença. “Noto que éramos muito amigas umas das outras, as velhotas que viviam ali eram amigas de nos darem um bocadinho de pão, o que pudessem, coitadinhas, até as nossas mães virem do trabalho”, acrescenta.
Desde a sua construção que o bairro do Casal Ventoso herdou uma imagem negativa, associado fortemente à miséria, ao roubo e, numa fase final, ao narcotráfico. O bairro passou por várias transformações, mas a memória de quem lá viveu ainda antes do mercado da droga revela uma faceta mais familiar e comunitária do bairro. “A união, a solidariedade e a entreajuda surgem nos relatos como elementos fundacionais do Casal Ventoso, a base da organização social do Bairro”, escrevem os autores.
Outra entrevistada na casa dos 60 anos destaca que gostava de viver no bairro, apesar do estigma associado ao mesmo, e que todas as pessoas do Casal Ventoso, escrevem os investigadores, “eram pessoas de bem, a ponto de ser possível dormir na rua sem receios, prática muito frequente no verão” ou então deixar as portas abertas durante a noite devido ao calor. Os moradores não receavam a vinda de residentes de outros bairros para os roubar.
As cheias de 1966 marcaram a população, conta uma entrevistada de 62 anos: “Vocês não se lembram das cheias de 1966, eram as vacas todas a boiarem, na quinta do Cabrinha. Muitas casas ficaram inundadas. Graças a Deus a minha, não. As pessoas eram todas muito unidas, faziam uma redoma e seguiam em frente”, lê-se no livro. Esta redoma, de proteção, de sentido de comunidade, é comum a todos os entrevistados. Não havia praticamente medo nas ruas, apesar de existirem algumas tensões típicas na comunidade.
O bairro, quase uma “aldeia urbana” – porque assumia características típicas de uma aldeia, mas dentro da vida normal de uma urbe –, marcou a memória coletiva dos seus habitantes. Um dos entrevistados, na casa dos 70 anos, chega mesmo a afirmar que “o que fez do Casal Ventoso um Bairro problemático foi a sociedade em si”, dada a negativa generalização de todo o bairro situado na encosta do Vale de Alcântara.
Fotografia: População a festejar o carnaval. Fonte: Núcleo Interpretativo do Casal Ventoso, fotografia retirado do livro dos autores.
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