Lisboa era, no início do século XX, tão retratada no cinema português que a expressão “comédias de Lisboa” acabou por prevalecer face às “comédias à portuguesa”. O investigador Tiago Baptista traça a evolução da representação do país e da capital no cinema português.
“O género dominante do cinema português é o próprio cinema português”, afirmou João Bénard da Costa em 2007, a propósito de um ciclo da Cinemateca Portuguesa dedicada aos géneros nacionais. Para o então diretor desta instituição, o cinema português distinguiu-se não por um género, mas pelo retrato do imaginário nacional, no qual Lisboa foi protagonista.
Tiago Baptista, investigador do Instituto de História Contemporânea da NOVA FCSH, utilizou este ciclo dedicado aos “géneros nacionais” e a afirmação de João Bénard da Costa como mote para explorar neste artigo a representação do imaginário coletivo do país no cinema português que protagonizou, segundo o cinéfilo, grande parte da sua história.
Se, numa primeira fase, no início dos anos de 1920, foram os conceitos de ruralidade, tradição e história que o cinema português agarrou para construir a identidade nacional, uns anos mais tarde a oposição “campo-cidade” marcou as comédias sonoras. Lisboa era por excelência a protagonista desse espaço urbano, de tal forma que vários autores preferem a expressão “comédias de Lisboa” do que “comédias à portuguesa” para designar estes filmes, salienta Tiago Baptista. Lisboa era, na altura, o mais importante mercado cinematográfico interno, o que pode explicar o número de vezes que é representada no cinema português.
No entanto, a Lisboa destas comédias nada tinha que ver com a realidade urbana e sociológica da capital, argumenta o investigador. A cidade retratada estava organizada em “aldeias”, onde todos se conheciam como os camponeses dos filmes mudos. O escritor António Ferro chega mesmo a dizer que as comédias dos anos de 1930 e 1940 eram o “cancro do cinema nacional”, cita Tiago Baptista.
Para combater a redução do cinema português às comédias populares e apoiar o cinema como arte, o regime salazarista criou, em 1948, o primeiro sistema de apoio à produção cinematográfica. O Fundo do Cinema Nacional financiaria bolsas de estudo para realizadores portugueses no estrangeiro e criaria, nesse ano, a Cinemateca Nacional (agora chamada Cinemateca Portuguesa) destinada a fomentar o gosto pelos filmes portugueses.
Nesse período, coexistiram duas correntes cinematográficas em Portugal: de um lado, as comédias populares, com Lisboa como pano de fundo, de que O Pátio das Cantigas, de António Lopes Ribeiro, é paradigma; do outro, filmes histórico-literários de prestígio, como Camões de Leitão de Barros.
No início dos anos de 1960, dois filmes inauguram uma nova perspetiva da cidade: Os Verdes Anos, de Paulo Rocha, e Belarmino, de Fernando Lopes. Os protagonistas são socialmente desenquadrados das multidões e marginalizados pela cidade burguesa, “metáfora perfeita da prisão social”, retratada pelos bairros modernos da Avenida de Roma ou pelas ruas da Baixa.
Desprezados, no entanto, pelas plateias, que continuavam a preferir as comédias lisboetas, alguns realizadores começam a adotar Manuel de Oliveira como referência – “um cinema de olhos postos no estrangeiro, mas sem nunca virar as costas à realidade cultural do país”. Nos anos seguintes, este cinema novo iria interessar-se pelas condições de vida dos operários e agricultores, e redescobrir o mundo rural. Nos anos de 1980, iria reavaliar a identidade nacional do país e partir para a Europa, para que esta pudesse, salienta Tiago Baptista, descobrir o cinema português, ao mesmo tempo que Portugal se descobria como país europeu.
Legenda da imagem: cena emblemática d’O Pátio das Cantigas. Narciso (personagem interpretada por Vasco Santana) enceta um diálogo com o candeeiro, proferindo a célebre afirmação “Estás com medo que eu seja cão e que te humedeça a base”.
O conteúdo “Os Verdes Anos” de Lisboa no cinema português aparece primeiro em FCSH+Lisboa.