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A gripe que desonrou a morte em Lisboa

A gripe espanhola, uma das grandes epidemias do século XX, provocou os piores dias nos cemitérios de Lisboa no outono de 1918. Uma investigação da NOVA FCSH revela, contra as divulgações da época, que foram os pequenos burgueses e o operariado os mais atingidos por esta gripe.

Lisboa, outubro de 1918. A pneumónica, mais conhecida como gripe espanhola, volta a aparecer na cidade pela segunda vez, ainda mais forte. Apesar de a capital já ter atravessado outras epidemias no passado, a gripe espanhola junta-se ao rol de doenças respiratórias como a tuberculose, o tifo exantemático e a febre tifoide, o que confunde a medicina em geral. 

Nada voltou a ser igual nesse outono: “A vivência na cidade modificou-se e as ruas ficaram desertas, apesar de os teatros, os animatógrafos e os recentes night-clubs continuarem abertos durante a pandemia”,  explicam Eunice Relvas, investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC) da NOVA FCSH, em conjunto com Delminda Rijo, do Centro de Investigação Transdisciplinar (CITCEM) da Universidade do Porto, no capítulo de livro “A Gripe Espanhola de 1918” (2020).

Mas não foram os estabelecimentos abertos que ditaram a propagação da epidemia naquele ano. A falta de higiene da população, a alimentação deficitária, a insalubridade das habitações, a falta de serviços de saúde e sanitários, entre outros, foram as causas para o elevado número de óbitos.

As áreas mais afetadas pela pandemia localizavam-se nos bairros circundantes das zonas centrais de Lisboa, ou seja, na zona ribeirinha e na cintura industrial, entre o ocidente e o oriente, onde vivia a pequena burguesia e o proletariado das indústrias.

Esta conclusão das investigadoras desdiz os relatórios dos Hospitais Centrais de Lisboa que afirmavam, à época, que a gripe tinha assolado todas as zonas de Lisboa por igual. Mas não. A gripe foi desigual em termos geográficos e, ironicamente, a população que, à partida, tinha mais poder económico para assistência médica, era aquela que mais longe estava dos hospitais da cidade, o que ditou esta desigualdade nos tratamentos de saúde. Porém, nestas zonas da cidade, também viviam classes mais pobres.

Ao longo dos dias de outubro, a pandemia foi-se agravando e, mesmo com as medidas do Governo Central que decretaram, entre outros, o encerramento de escolas e outros estabelecimentos de educação, a requisição de viaturas particulares e militares para fins médicos, o Município de Lisboa adicionou medidas importantes para os serviços hospitalares.

Para além dos hospitais de D. Estefânia, de S. José e do Rego, “o número elevado de doentes originou a abertura de três hospitais provisórios, exclusivos e de isolamento, para estes enfermos”. Assim, as portas do hospital de Arroios, do hospital das Trinas e as enfermarias no Liceu Camões foram abertas aos doentes.  A Cruz Vermelha, na rua Junqueira, e ainda os hospitais militares de Estrela, Campolide e o Hospital da Marinha também abriram enfermarias para os doentes, entre outubro e novembro de 1918.

Apesar da assistência médica possível na altura, os cemitérios de Lisboa também passaram por dias complicados. “No seu momento mais intenso, na primeira quinzena de outubro, imperou o caos na capital. Terá sido aterradora a omnipresença da morte quando muitos cadáveres foram conduzidos, amontoados em carroças e tapados com trapos ou serapilheira, para as valas comuns dos cemitérios” da cidade, explicam.

O cemitério do Alto de São João, sendo o mais extenso da cidade, teve o máximo de enterros no dia 20 de outubro, segundo a imprensa: 131 óbitos, um em depósito e o trabalho exaustivo de 14 coveiros.  Alguns chegaram a ficar doentes.

“Neste outono fatídico, com enterramentos de urgência devido à aglomeração de cadáveres em decomposição nas morgues dos hospitais e em casas particulares, a dignidade na morte esteve ausente de Lisboa” e apenas começou a atenuar a partir do dia 24 de outubro, apontam as investigadoras. 

Apesar dos fracos recursos na ajuda da prevenção, da sensibilização, apoio e tratamento dos enfermos e famílias, bem como a falta de recursos médicos, como medicamentos, Lisboa tentou combater esta epidemia com todas as armas que tinha ao seu alcance. Porém, não foi esse esforço que ditou o fim da doença. “A pandemia findou a sua caminhada quando a natureza o definiu”, concluem as autoras.

Fotografia em destaque:  Doentes num hospital  (191?). Alberto Carlos Lima, Arquivo Fotográfico de Lisboa

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