O atual edifício da Escola de Música do Conservatório Nacional já foi hospício, igreja e convento. Por lá passaram confessores de reis, pregadores, figuras da academia portuguesa e ainda a celebração da canonização de Santo André Avelino que durou oito dias.
Na Rua dos Caetanos, no Bairro Alto, há um edifício que esconde uma história peculiar. A Escola de Música do Conservatório Nacional está sediada entre quatro paredes que nem sempre serviram o propósito das artes. Do século XVII até ao século XX, este edifício foi hospício, lugar de culto, vítima do terramoto de 1755 e mais tarde reerguido para albergar o Conservatório Nacional.
Com aspeto discreto e construída no espaço diminuto, a igreja de Nossa Senhora da Divina Providência de Lisboa era das mais famosas e conhecidas da capital. Não só se tornou exemplo na vida religiosa e cultural da cidade, como por lá passaram confessores do rei, importantes figuras da sociedade portuguesa e pregadores. Além disso, os festejos e as missas eram celebrados com pompa e circunstância.
Um dos eventos sacro-profanos que provam a solenidade do convento foi a canonização de Santo André Avelino, em 1712, que mereceu o devido festejo em Portugal, conta Maria João Pacheco Ferreira, investigadora do Centro de Humanidades (CHAM) da NOVA FCSH, neste artigo publicado em 2018. Este santo, “invocado pelos devotos como protetor celestial contra a morte repentina”, ilustrava a oportunidade perfeita para os padres teatinos mostrarem a ostentação de objetos e de organização dos festejos.
Através de uma Notícia publicada em 1713 é possível perceber como se celebrou a canonização do santo e como era a decoração e o interior da igreja: “Estes opúsculos emergem como indispensáveis fontes documentais, uma vez presente a riqueza de informação que tantas vezes encerram, sobre os mais díspares aspetos que afetam a organização e o espaço em que se desenrolam as comemorações”.
Durante os oitos dias de celebração, os locais foram variando na capela real, na Igreja da Divina Providência, no Convento de São Vicente de Fora e no Convento de Santo Elói. Medalhas de prata, laços de fitas coloridas com o vulto de Santo Avelino e de Virgem Maria foram oferecidas aos reis e classes superiores, e foram ainda oferecidas medalhas de bronze aos devotos do santo, conforme a sua situação socioeconómica.
A decoração, essa, era rica em têxteis, “dotados de uma impressionante versatilidade” e de “recriar todo o tipo de formas e feitios”, aponta a investigadora. O interior da igreja foi decorada de forma diferente, de maneira a “arrebatar os sentidos dos devotos, em particular, a visão, mas também o tato, a audição e o olfato”. Como? Através de pastilhas odoríferas que ardiam na capela e libertavam odores, à música e outros artifícios.
Início, ascensão e queda
Tudo começou com a devoção e influência da Ordem dos Clérigos Regulares que se instalaram em Lisboa em 1650 numa pequena casa alugada no Bairro Alto. A morada continuou a ser a mesma depois da Ordem conseguir casa própria. No ano a seguir, a 1 de julho de 1651, a igreja do hospício da Divina Providência começava a ser construída e abria ao público dois anos mais tarde. Mas algo de maior se projetava, lê-se no website LXConventos.
A igreja torna-se o primeiro convento da ordem em Portugal, através da autorização de D. Pedro II, em 1681, para que o cenóbio passasse a convento. Para construí-lo, dois projetos ficaram em mesa, um abandonado logo após a oval de D. Pedro II, e outro projetado pelo padre D. Manuel Caetano de Sousa. Porém, entre estes dois conhece-se o trabalho nunca acabado do padre teatino Guarino Guarini, de 1668. Mas o edifício não iria ficar pronto por três motivos: verbas, falta de espaço e o terramoto de 1755.
“Mas de novo – ignoramos quando – se suspendem os trabalhos por falta de verbas e da exiguidade de espaço, pelo que também o segundo projeto é adiado, resultando numa construção truncada e adaptada”, aponta Maria João Pacheco Ferreira. Este edifício acaba por ceder ao terramoto de 1755 “ao ponto de obrigar à transferência da maior parte dos religiosos para a sua quinta do Campo Grande, até à Quaresma de 1757, quando terminam as obras de reparação do complexo”.
Mais tarde, decretada a lei de extinção das ordens religiosas, em 1834, a igreja de Nossa Senhora da Divina Providência de Lisboa iria dar espaço a outros ofícios. Sabe-se que tropas estiveram aquarteladas no edifício “altura em que sobrava apenas um religioso”, lê-se no website LXConventos e, mais tarde no século XIX, parte da igreja era usada para as aulas régias de Desenho e Figura e de Arquitetura Civil. As artes estavam dentro de quatro paredes.
O Conservatório, com o passar das décadas, degradou-se de tal forma que chovia dentro das salas. Em 1912, o antigo convento dos Caetanos e casa das artes é demolido: “Entre 1911 e 1931, o projeto da autoria do desenhador Carlos Monção modifica radicalmente o edifício, apagando a quase totalidade das características do antigo espaço conventual”, lê-se no projeto LxConventos. Depois de intervenções ao longo do século XX, hoje o edifício continua a preservar as artes com pequenos fragmentos de do que outrora foi a igreja mais popular de Lisboa.
Fotografia: Escola de Música do Conservatório Nacional. Créditos: CML | DMC | DPC | José Vicente 2015
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