Viradas para a rua, as marquises são o apêndice doméstico da reclusão. São visíveis, mas fechadas. Convertem-se no foco dos transeuntes, mas são o espaço do periférico e do desnecessário. São varandas alteradas, porque nem sempre as montras são abertas ao mundo.
Há incontáveis varandas em Lisboa. Povoam os eixos verticais dos bairros históricos da cidade e são fáceis de construir e de alterar. Na sua génese, abertas, o seu fechamento em marquises permite um novo diálogo com o espaço e com os objetos. A sua funcionalidade torna-se mutável – e a extensão da fronteira do privado abre novas gramáticas de uso.
“A varanda só consegue ser analisada quando percebemos a forma como as pessoas veem o seu espaço doméstico”, explica Ricardina Isabel Baptista Sousa, no trabalho de projeto final (2020) do Mestrado em Antropologia – Culturas Visuais, da NOVA FCSH. De câmara na mão, a investigadora mergulhou nas traseiras da intimidade humana para desvendar a lógica do utilizador por detrás das varandas de Lisboa. Nelas, descobriu uma rica relação entre o espaço e as pessoas.
Para a investigadora, a privacidade é o conceito-chave para compreender as casas lisboetas. O fechamento decora o espaço com uma sensação de secretismo que “permite uma maior liberdade, falta de controlo ou censura sobre qualquer tipo de ações”. A habitação torna-se um refúgio perante o olhar julgador do outro. Em contrapartida, a varanda parece ser um lugar de fronteira.
Se, por um lado, tem uma componente pública, a varanda não é um espaço comum de socialização, como um café. Segundo a autora, o seu caráter público remete para a “visualização de ações” – e isso dita aquilo a que estamos confortáveis a expor. Assim, a varanda, independentemente das alterações que tenha, torna-se um espaço de exposição a um outro, desconhecido, que caminha na rua.
“Na nossa cultura, importa mais aquilo que os indivíduos da nossa rede de relações sociais pensam sobre nós, do que o que meros estranhos que passam na rua”, explica a investigadora. Por isso mesmo, as varandas tornam-se recetáculos de objetos “menos nobres”, que não ganharam lugar no resto da casa. Por outro lado, complementa a investigadora, “os objetos mais importantes e que mais nos transmitem algo encontram-se no interior da casa, onde há uma exploração maior do “eu””.
Através de uma reconversão do espaço, as varandas são fechadas para aumentar o tamanho da casa. Assim, tornaram-se espaços de arrumação ou escritórios. “A maioria dos espaços abertos, como as varandas, vão ganhando conotações e usos diferentes conforme a evolução dos tempos”, conclui.
Nos bairros da Lisboa citadina o espaço doméstico é escasso e, casualmente, os moradores conquistam-no aos pássaros. Roubam-no à rua.
Fotografia: marquises de um prédio na freguesia do Areeiro. Fotografia de Paulo Ferreira (O Corvo)
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