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Rua da Palma, o arruamento que “metade não se vê, metade não se sente”

A Mouraria e a Rua da Palma tiveram diferentes rostos ao longo de quatro séculos, mas hoje esta rua é apenas vista como a ligação para a Praça do Martim Moniz e extensão da Avenida Almirante Reis. Que identidade (quase) perdida é esta da Rua da Palma e do vale da Mouraria? Um investigador da NOVA FCSH dá a resposta.

Quem passa pela Mouraria e pela Rua da Palma está longe de imaginar que a “Mouraria da velha Rua da Palma”, local onde nasceu Amália Rodrigues, era um local de hortas e de agricultura, ainda antes da construção da cerca fernandina e das portas da cidade. Mais: que toda esta zona teve de ser “rasgada” para ter o aspecto de hoje e que muita história ficou perdida no tempo. As intervenções neste espaço, especialmente depois do terramoto de 1755, abriram um vazio no imaginário lisboeta e na sua identidade, explica Tiago Borges Lourenço, investigador do Instituto de História da Arte (IHA) da NOVA FCSH, no artigo (2018) sobre os quatro séculos deste arruamento.

O investigador começa por desmitificar a origem toponímica do arruamento, comumente associada à história do mártir Henrique de Bona, soldado alemão que morreu como mártir no cerco de Lisboa em 1147. Reza a lenda que na sua sepultura nasceu uma palmeira com poderes medicinais e que D. Afonso Henriques terá retirado uma palma e colocado no seu túmulo no Mosteiro de São Vicente de Fora, história que deu origem ao nome da rua. Mas a explicação é mais simples e menos poética.

Uma parte do vale da Mouraria pertencia aos cónegos regrantes de Santo Agostinho de São Vicente de Fora e outra parte a Fernão Dias. Quando este morreu, Francisca Coelho, a neta, e o seu marido, José Palma, ficaram com o aforado (ou seja, o contrato) daquela zona. Quando se rasgou novamente o terreno do vale da Mouraria no sentido sul-norte para duas novas ruas, na segunda metade do século XV, o marido de Francisca Coelho aproveitou a oportunidade para imortalizar o seu nome.

Com o passar das décadas, surgiram importantes ruas como, por exemplo, a Rua dos Canos, e construiu-se uma ponte sob a ribeira de Arroios que permitiu à população deslocar-se ao Rossio sem ter de cruzar a Porta de São Vicente da Mouraria. A Rua Nova da Palma, hoje conhecida como Rua da Palma, tornou-se uma das principais vias de saída da cidade, do Rossio para norte, em direção à Estrada de Sacavém.

Porém, o terramoto de 1755 e a reestruturação da cidade colocaram este arruamento em segundo plano. A sua crescente utilização, por um lado, e as ineficazes soluções, por outro, originaram um problema que se arrastou até ao século XX e, com ele, o massacre crescente da identidade deste arruamento. Um dos projetos mais conhecidos foi a construção da Avenida dos Anjos, hoje apelidada como Avenida Almirante Reis, que terminava na Rua Nova da Palma.

Mas este prolongamento não solucionou o problema do tráfego, dado que a estrutura da Rua Nova da Palma tinha eixos de três larguras diferentes, o que, quando afunilava, dificultava o tráfego rodoviário. Só em 1920 é que se resolveu este obstáculo e o alinhamento sacrificou o Coliseu de Lisboa e o Paraíso de Lisboa, edifícios construídos nos terrenos do Palácio dos Condes de Folgosa.

A sul, a ligação com a baixa ribeirinha continuou por solucionar. Só anos mais tarde, em 1949, é que se celebrou o contrato entre a Câmara Municipal de Lisboa e o arquiteto João Faria da Costa para encontrar uma solução para o vale da Mouraria. O projeto colocava a Avenida Almirante Reis “entre praças”, com uma “artéria circular subterrânea”, com os túneis de Corpo Santo-Restauradores, Restauradores-Martim Moniz e Martim Moniz-Campo das Cebolas a encontrarem-se na Praça D. João I.

Esta parte do projeto não seguiu avante, contudo foi aprovada aquela “que parecia ser a sua vertente de mais difícil concretização – a que previa o (quase) total arrasamento de uma área histórica a uma escala que durante cerca de dois séculos Lisboa não havia assistido, numa operação que previu afetar mais de 5000 pessoas, 239 prédios e 500 estabelecimentos comerciais” e quase uma dezena de ruas e de becos, aponta o investigador. Dos edifícios que se perderam, Tiago Borges Lourenço destaca o Palácio do Marquês de Alegrete, a Igreja do Perpétuo Socorro e o Teatro Apolo, estes dois na Rua da Palma.

Dos muitos projetos e soluções urbanísticas que se seguiram, o arquiteto Pardal Monteiro desenhou o edifício para a companhia de seguros “A Mundial”, transformado e inaugurado em hotel, em 1958, o único que seguiu a traça do plano de Faria da Costa.  Hoje, o edifício ainda continua na Praça do Martim Moniz com o mesmo nome.

Esta “ferida aberta” no coração da cidade apenas começou a encontrar soluções mais concretas na década de 1990, apesar de ter perdido grande parte da sua identidade ao longo dos séculos. O investigador afirma que, em Lisboa, é o único arruamento com mais de 400 anos que está ausente do imaginário lisboeta: “No final de todo este riquíssimo e longo processo, a velha Rua da Palma é hoje uma rua que metade não se vê e a outra metade não se sente”, conclui.

 

Fotografia: “Panorâmica da praça Martim Moniz e da rua da Palma aquando das demolições”, em 1951. Eduardo Portugal, Arquivo Fotográfico de Lisboa.

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